A GREAT DAY FOR FREEDOM

A sensação de liberdade sempre me alucinou. Eu adorava poder ir aonde quisesse. Ficava excitado com a idéia de sair para qualquer lugar, a qualquer hora. A busca de aventuras me elevava a um nível de explorador. Tudo era motivo de indagação. O que eram aquelas formas? De onde vinham aqueles cheiros? E, o mais importante, porque eu não podia pular o muro e pegar aquelas lindas mangas maduras?

Steve McQuenn, em cena do filme Papillon
Steve McQuenn, em cena do filme Papillon

Pode a liberdade ser considerada como algo real em nossas vidas?

Durante boa parte do século XIX e o início do século XX, a maioria das pessoas “comuns” transitava pelas ruas de uma cidade razoavelmente urbanizada usando uma indumentária básica. Você se lembra das fotos em preto e branco? Mulheres com seus longos vestidos, anáguas, chapéus e sombrinhas. Homens a caráter, chapéu panamá, terno preto, sapatos lustrados e a famosa bengala. Estilo de época, diriam alguns. Talvez!

Num país tropical como o nosso, imagine se essa moda estivesse em voga ainda hoje. Como eterna colônia, importamos tudo, inclusive conceitos. Principalmente. Não importa o que falamos, comemos, bebemos, vestimos ou usamos, seja em qualquer circunstância, precisa ter sido avalizado e endossado pela propaganda. Hoje, é claro, ninguém mais usa o terno preto que o avô da vovó usava para ir comprar pão na esquina. Atualmente, somos “livres” para fazer as nossas escolhas.

Será?

Tente ser aceito pela sociedade sem ter um emprego ou a devida documentação que identifique você; tente não pagar algum imposto. Existem pessoas que nasceram em comunidades distantes, paupérrimas, sem a menor condição de criar seus próprios filhos, não podendo nem imaginar se o dia seguinte será melhor que o atual. Como alguém que mora numa favela, desprovido totalmente de qualquer recurso financeiro, emocional e intelectual pode ser chamado de um ser humano livre. Muitas vezes, esse “cidadão” mal sabe que faz parte de um corpo social, coberto por direitos e amparos governamentais. Como ser livre, se sou obrigado a estudar num sistema que me força a ler suas cartilhas, que ninguém sabe se estão dizendo a verdade inteira? Como ser livre, se me obrigam a fazer um vestibular, baseado nas tais cartilhas, para conseguir um emprego descente? Como ser livre, se me imputam crime caso eu não cumpra com meus deveres cívicos, me alistando, votando e pagando impostos? Como ser livre…

Em seu artigo “A doença de ser normal”, escrito em de 18 de julho de 2011, para a Revista Época, a jornalista Eliane Brum cutuca a “onça” com uma vara sobremaneira curta. Ela diz, “Com medo da liberdade e dos riscos inerentes a ela, muitos de nós colam no grupo. Seja ele do tipo que for: religioso, corporativo, profissional, cultural, intelectual, político, de orientação sexual ou até esportivo”. Ela afirma que usamos o grupo para justificar nossas decisões, que ainda não somos capazes de assumir com autenticidade nossos próprios pensamentos. “Cada um deles (os grupos) garante, ainda que de forma muito mais frágil do que a tradição”, continua, “um certo jeito de se comportar e de se vestir, um tipo de ambiente a frequentar, temas que merecem ser debatidos, gêneros de lazer e de viagens para as férias e para os fins de semana, crenças para compartilhar e até bens para adquirir”, afirma.

Será que não existe saída para quem quer ser único?

O assunto liberdade é muito escabroso. Existem pessoas isoladas em penitenciárias e que, mesmo assim, conseguem compor lindas canções, escrever poemas espetaculares ou até mesmo pintar quadros inimagináveis. Por outro lado, há pessoas que residem em imensas mansões e são incapazes de se relacionar com alguém, sem forças ou motivos para pegar o carro ou decolar com seu helicóptero particular, simplesmente porque têm medo do mundo, da reação alheia. Alegam que os outros sempre se aproximam por causa do seu dinheiro.

Há certa verdade nisso, mas, afinal, quem está preso de verdade?

E, o que é ser livre?

Filosoficamente, podemos dizer que somos prisioneiros em nossos próprios corpos. Entretanto, mesmo que um obstáculo nos impeça de ir em frente, nada pode deter o pensamento. Mesmo que seja colocado numa solitária escura, comendo insetos e dormindo no chão, um prisioneiro com os motivos que considerar adequados poderá sair de lá vivo e consciente. Amarram suas mãos, mas não conseguem aprisionar sua mente.

Não somos livres. Nunca fomos e nunca seremos.

Não sou o tipo religioso, mas tem uma citação de Paulo de Tarso que gosto muito: “Não vos conformeis com esse mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso entendimento”. O cara fala uma coisa que realmente pode ser libertadora. Você se torna escravo porque deixa as coisas sempre do mesmo jeito, nunca quer pensar diferente. Acomoda-se. Ser livre é pensar sempre com uma nova possibilidade. “Pedras que rolam não criam lodo”, diriam os roqueiros.

Animais de carga aceitam uma viseira na cara e não reclamam muito da chibata no couro. O detalhe é que não somos animais. Podemos recalcitrar e jogar a carroça no chão, tomar a chibata das mãos de quem insiste em nos oprimir e mudar o jogo.

Concordo com a Eliane sobre alguns aspetos do comportamento grupal. Mas, sinceramente, não existe vida verdadeira que não seja vivida socialmente, e nunca encontraremos a nossa identidade se nos afastarmos do convívio com aqueles que se importam conosco. Não existe força ou verdade numa pessoa solitária. Para ser transformado pela renovação de seu entendimento, o sujeito precisa se relacionar. É no grupo que a gente aprende a amar, pois em grupo desenvolvemos o espírito solidário e a capacidade de compartilhar cada pedaço da nossa existência.

É verdade que muitas pessoas preferem se esconder dentro de grupos para não terem de se responsabilizar por decisões pessoais. A maioria não tem coragem de se assumir como um ente, um ser que pensa e que realiza. A modernidade conseguiu pasteurizar o jeito de pensar das pessoas, levando-as ao menor esforço, optando por modelos pré-fabricados de comportamento. O sistema prefere ver todo mundo dividido em “grupos” rivais, lutando entre si, em busca de inatingíveis ideais, assim consomem energia e se satisfazem apenas com as pequenas vitórias imaginárias de suas lutas sem propósito. Isso é uma prisão. E o pior modelo de prisão que pode existir é aquele em que nos colocamos conscientemente, trancando a porta e jogando a chave fora. Tal modelo é bem difícil de ser desfeito, pois não foram as mãos ou os pés que se fizeram envoltos em ferrolhos, mas a mente e tudo aquilo que ilumina a vontade. Uma vez entregue o coração à submissão, deliberadamente, degusta-se o pior cálice que um ser humano pode apreciar: a escravidão passiva.

Minhas aventuras na infância me ensinaram muito. Desde o respeito por lugares altos, a não experimentar substâncias desconhecidas, até a simples verdade de que muros altos sempre escondem cães proporcionalmente ferozes. A liberdade de viver a vida, seja em grupo ou não, passa primeiramente por uma verdade intrínseca: não existe uma única liberdade. Seria ótimo se houvesse um planeta para cada ser humano. Ali, seríamos o máximo e faríamos qualquer coisa. Desde ligar o som alto, vomitar em qualquer lugar, xingar todos os times adversários, soltar todos os gazes que o corpo humano puder produzir; queimar, quebrar e destruir tudo; cultivar, construir ou lavrar um campo, ir e vir incessantemente. Mas, isso seria terrível. Afinal, com quem, depois de feito tudo, ou com quem, durante, poderíamos compartilhar as sensações experimentadas? O mal assolador do “mundo moderno” (chamado de livre) é a depressão, que mata mais que muitas outras doenças terríveis.

Assim como o tempo nos expõe à sua relatividade, a própria liberdade também possui suas indescritíveis feições. Não há como pintá-la, desenhá-la ou revelar suas formas. É algo que está no coração de quem a sente e vive. Em cada batida, sabemos se há sinceridade ou não. Mesmo que, num momento, sejamos prisioneiros de algo a nos oprimir, temos a convicção de que nunca poderão acorrentar nossas ideias; mesmo que nos amordacem, estaremos rindo com os olhos e se, ainda assim, nos arrancarem os globos, riremos com não sei dizer o que, mas estaremos de cabeças em riste. Porque a liberdade não pode entrar em nós, não a compramos ou adquirimos. Uma vez despertada, deseja incontrolavelmente sair, posto que seja o resultado daquilo que queima, desde não sabemos quando, mas que pulsa nas veias de todo e qualquer ser humano.

Você se considera livre? Pense muito bem antes de responder!

Tudo o que desejar fazer estará permitido? Qualquer coisa?

Família, estudo, trabalho, amor, casa, viagens, amigos, aventuras, vícios, virtudes, sonhos. Seriam todas essas opções plausíveis de apenas um “sim” ou um não. Creio que a liberdade é um campo de batalhas onde temos que lutar diariamente para manter as linhas inimigas afastadas do centro de nossas vidas. Durante toda a história da humanidade usou-se a força e a violência para oprimir as pessoas. Milhões  foram aprisionadas, escravizadas e mortas para satisfazer os interesses de líderes tiranos. Hoje, não é mais necessária tanta violência. Existe a mídia, com as suas mais variadas ferramentas de comunicação. Um povo convencido de que está tudo bem, de que não precisam se incomodar, pois todas as providências já foram tomadas, é um povo vivendo uma vida de gado. A propaganda nos mantém “comportados” com a medida certa de pão, leite, circo e medo. Claro, o medo garante que não iremos nos manifestar, senão perderemos o pão, o leite, o circo e os dentes.

Certo dia, quando ainda era criança, eu brincava com uns amigos na rua e nem imaginava o que estava prestes a acontecer. Meu amigo Leonardo começou a jogar pedras por cima de um matagal, num terreno baldio perto de onde estávamos. O que ele não sabia era que atrás daquele lugar havia uma casa, e o dono dela não tinha um senso de humor lá muito agradável. De repente, o cara aparece do nada, gritando e gesticulando, e queria saber quem estava jogando pedras na casa dele, em tempo de machucar um de seus filhos. Meu “amigo” Leo prontamente usou o dedo indicador para imprimir sua acusação sobre mim. Eu fiquei branco, mas tentei reagir dizendo que era mentira. Entre “disse e me disse”, foram os dois arrastados para a casa do sujeito, aos prontos de desespero. Ficamos lá, sendo interrogados pelo homem barbudo, com a sua mulher dizendo que aquilo não tinha necessidade. Quando ele viu que a gente mais chorava do que dava respostas, resolveu ir falar com os nossos irmãos mais velhos, que estavam do lado de fora da casa. O acordo rezava que eu deixaria minha camiseta para trás, tendo que trazer meu pai para falar com ele e, assim, poder levá-la de volta. Até ontem eu nunca mais voltei lá!

Moral da história: Nunca dizem a verdade sobre nós; tudo é motivo para prender alguém que julgamos mais fraco ou inferior; e a liberdade tem seu preço, mesmo que seja apenas uma camiseta da Hering.

Lembre-se: para cada decisão existe uma consequência. A liberdade, nos mais variados níveis, exige proporcional responsabilidade. Não dá para virar as costas para o mundo, começar uma vida totalmente nova e, simplesmente, não acontecer nada. Utopia. Mas, se estamos conscientes dos riscos e prontos para a experiência, vale a pena qualquer mudança se ela já começou no lugar mais importante: o nosso coração. Essa é a fonte de toda e qualquer liberdade possível. Não a venda por nenhum preço, pois não há em parte alguma do mundo dinheiro capaz de lhe cobrir o valor.

4 comentários em “A GREAT DAY FOR FREEDOM

  1. Às vezes é mesmo necessário ser FORTE, CORAJOSO E HONESTO!!!
    Seu texto é fabuloso justamente porque reune essas três qualidades.
    Concordando com Rosa Luxemburgo… “quem não se movimenta não sente as correntes que o prendem”.
    “Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”.

  2. Uma palavra para seu texto: FORTE!

    Penso que gostaria de ler um autor que fala sobre mitos, liberdade, angústia e outros temas existenciais: Rollo May. Não são todos os livros que abordam esses assuntos, mas se estiver interessado, posso fazer uma seleção para você.

    Seu blog é ÓTIMO e estou sempre acompanhando tudo, William!

    Um abraço!

    1. Olá Silvia, bom dia!
      Que surpresa agradável saber da sua visita e que está gostando do nosso trabalho.
      Fico muito feliz com isso.
      Adoraria receber a seleção que mencionou do Rollo May.
      Ótima semana para ti e volte sempre.
      William Barter

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